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Estudo mostra importância da mobilização de mulheres encarceradas

Estudo mostra importância da mobilização de mulheres encarceradas

Faculdade Nacional de Direito chama a atenção para os desafios do aprisionamento feminino

Vivi Fernandes de Lima

“Se ontem nem a voz pertencia às mulheres escravizadas, hoje a letra, a escrita, nos pertencem”, ressaltou a escritora Conceição Evaristo sobre escrevivência, conceito criado por ela para se referir à literatura que reflete as vivências atravessadas pela coletividade. A frase foi dita em depoimento para o livro “Escrevivência: a escrita de nós”, publicado em 2020, e é resultado de uma longa reflexão da autora sobre a escrita das mulheres negras. O mesmo conceito é a base de uma formação para o Coletivo Encontro Delas, composto por mulheres impactadas pelo sistema de justiça criminal: sobreviventes do cárcere, as que cumprem pena em liberdade e familiares de pessoas privadas de liberdade.

Há cerca de um ano, 12 mulheres que passaram pelo sistema prisional se reúnem mensalmente para se informar e criar estratégias que possibilitem o acesso a direitos. Doutoranda da Faculdade Nacional de Direito (FND/ UFRJ), diretora do Instituto de Cultura e Consciência Negra Nelson Mandela e militante do Movimento Mulheres Negras, a advogada Elaine Barbosa atua como mediadora desses encontros. As reuniões, que acontecem na Casa da Escrevivência, criada por Conceição Evaristo no Rio de Janeiro, também fazem parte da pesquisa de doutorado de Elaine, que investiga como coletivos formados por egressas do cárcere impactam o sistema de justiça.

Sob orientação da professora e advogada Luciana Boiteux, que coordena o projeto Mulheres Encarceradas, do Laboratório de Direitos Humanos da Faculdade Nacional de Direito (Ladih/FND), Elaine desenvolve a tese “Desilenciando o feminicídio de Estado: resistência negra a partir das mulheres atravessadas pelo cárcere”. “Há uma dificuldade grande de capacitação para emprego e de acesso à saúde para essas mulheres. Para elas, o cuidado com a saúde mental, por exemplo, é fundamental. Então, elas se autoajudam nesses encontros, é como se estivessem se aquilombando para sobreviver depois de passarem pela prisão”, explica a doutoranda.

Conversas que fortalecem

Os encontros, até então, foram pautados em letramento jurídico, segundo Elaine, que contribui na orientação do grupo sobre como podem se articular juridicamente para defender os direitos. Agora, neste último bimestre de 2025, a expectativa é que as participantes escrevam as próprias histórias. “Que elas realmente possam, com suas experiências e conexões, colocar suas vozes nesses relatos, por elas mesmas”, diz a pesquisadora.

Vanessa – para proteger as identidades, todas as egressas do sistema penitenciário citadas nesta reportagem são mencionadas por nomes fictícios – ficou presa por quase três anos, acusada injustamente de homicídio. Metade desse tempo, cumpriu em regime fechado, e a outra, no semiaberto, viveu e testemunhou histórias que infelizmente nada têm de ficção: “Vi coisas horrendas, mortes, drogas, violência… Conheci uma menina, negra e de comunidade, que foi acusada de matar o próprio filho. Ela ficou dois anos presa. Sofreu muito porque a prisão feminina não aceita quem mata criança, pai e mãe. A advogada conseguiu provar que o filho estava vivo, só que era meio tarde, ele já tinha ido para a adoção”.

Esperança nascida na prisão

Dos relatos surgidos dos encontros, novas possibilidades jurídicas podem ser criadas. Elaine se debruça sobre essas mobilizações em seus estudos. Em 2015, ela já se dedicava a outro coletivo de mulheres egressas, o Instituto Phoenix, e ao Instituto Nelson Mandela, que atua no campo prisional do Rio de Janeiro há 35 anos, fundado por José Carlos Brasileiro (1957-2017) quando ainda estava preso. Brasileiro se tornou uma referência dos direitos humanos nessa área, e o Instituto Nelson Mandela “é considerado a primeira presença oficial do Movimento Negro dentro das penitenciárias da América Latina, ou seja, é a primeira entidade negra de defesa dos presos no Brasil”, como escreveu Elaine Barbosa no livro “Aprendizagens decoloniais: cartas de mulheres encarceradas sob a ótica do movimento negro educador” (Editora Pallas, 2025).

Daniele foi uma das que contaram com a ajuda do instituto fundado por Brasileiro para conquistar a liberdade. Presa em 2009, acusada de tráfico de drogas por ser parente de um traficante, passou nove meses no cárcere. “Eu estava num bar. Tinha ido comprar cigarro e me prenderam. Mas não tinha nada comigo nem na minha casa”, lembra Daniele. Ela garante que sua soltura só foi possível devido ao empenho do Instituto Nelson Mandela em comprovar a inocência: “Foi o Brasileiro quem batalhou pela minha liberdade provisória e, depois, pela minha liberdade total. Não fui sentenciada”.

Dados para políticas públicas

O sucesso da defesa de Daniele não é comum. Segundo Luciana Boiteux, que pesquisa política de drogas e sistema penitenciário desde 2012, como as prisões por tráfico são feitas em flagrante, muitas pessoas ficam em prisão preventiva. “O tráfico é um crime que dificilmente a defesa consegue liberdade provisória”, diz a advogada. Durante seus estudos no campo prisional, ela descobriu que o tráfico era a maior causa de mulheres presas e que a quantidade de encarceradas estava aumentando de forma acelerada: “Começamos, no grupo de pesquisa, a levantar dados sobre a população feminina nas prisões, quase ninguém falava sobre isso. Entre 2012 e 2015, esses dados começaram a circular,e as pessoas se deram conta de uma situação que era muito pouco visibilizada”.

Em 2016, Boiteux publicou um artigo chamando a atenção para o aumento de 503%, em 15 anos, da taxa de aprisionamento feminino, sendo o tráfico de drogas o delito que mais encarcerava as mulheres. Naquele mesmo ano, foram aprovados o Marco Legal da Primeira Infância e uma alteração no Código Penal que possibilita a substituição da prisão preventiva por prisão domiciliar no caso de responsáveis grávidas ou que cuidem de filhos de até 12 anos. Um caso em especial chamou a atenção para esse fato: o de Adriana Ancelmo, então esposa do ex-governador do Rio de Janeiro Sérgio Cabral Filho – os dois foram presos sob acusações de lavagem de dinheiro e organização criminosa.

Luta coletiva

Na ocasião, o benefício da prisão domiciliar para Adriana foi reconhecido pela Justiça, por ter filhos menores. Além de se apoiar na legislação brasileira, a decisão estava de acordo com as Regras de Bangkok, diretrizes aprovadas na Assembleia-Geral da ONU de 2010 para o tratamento de mulheres presas: “Penas não privativas de liberdade serão preferíveis às mulheres grávidas e com filhos dependentes, quando for possível e apropriado, sendo a pena de prisão apenas considerada quando o crime for grave ou violento ou a mulher representar ameaça contínua, sempre velando pelo melhor interesse do filho ou filhos e assegurando as diligências adequadas para seu cuidado”.

No entanto, a decisão foi revogada, a pedido do Ministério Público Federal, pelo fato de que outras presas na mesma situação deveriam ter o mesmo direito. O imbróglio fomentou ainda mais a pressão para que se aplicasse a lei não só a Adriana, mas a todas as mulheres privadas de liberdade responsáveis por filhos menores. Marcado por um vaivém jurídico, o caso foi notícia por cerca de um ano nos principais jornais. O que poucos falam, porém, é que houve uma grande mobilização de coletivos de presas e familiares, especialmente o movimento de mulheres negras, para fazer cumprir a lei. É nesse ponto que a pesquisa de Elaine Barbosa avança: “Quando Adriana Ancelmo teve o habeas corpus concedido com essa justificativa de filhos menores, começou uma forte mobilização porque a grande maioria das mulheres encarceradas era responsável por filhos menores de 12 anos. Isso foi um estopim muito importante”.

Ainda presas

De lá para cá, a população carcerária feminina vem diminuindo, possivelmente por conta da aplicação dessa lei. Em 2018, o STF concedeu habeas corpus coletivo, substituindo a prisão preventiva por domiciliar, para gestantes, lactantes e mães de crianças de até 12 anos ou de pessoas com deficiência. Os dados mais recentes publicados pela Secretaria Nacional de Políticas Penais (Senappen) indicam que, no primeiro semestre de 2025, a população feminina no cárcere era de 31.773 mil presas; em 2016, havia 39.751.

A lei que garante a prisão domiciliar nesses casos representa um avanço nos direitos humanos, mas ainda não é aplicada de forma ampla. Neste ano, por exemplo, uma mulher indígena puérpera ficou presa com seu filho recém-nascido numa cela com homens e sofreu abusos sexuais de policiais por nove meses. “Esse caso estava totalmente fora da letra da lei. O sistema penitenciário ainda é uma caixa-preta”, diz Luciana Boiteux, que também ministra curso de extensão voltado para a defesa de mulheres encarceradas.

Na área da saúde, a falta de implementação de políticas públicas para a população encarcerada ainda salta aos olhos. A advogada e pesquisadora visitante da Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp/Fiocruz) Luciana Simas dedicou o pós-doutorado ao estudo da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde das Pessoas Privadas de Liberdade no Sistema Prisional (Pnaisp), decretada em 2014. Realizada no âmbito do Programa de Bioética, Ética Aplicada e Saúde Coletiva Bioética da UFRJ, a pesquisa identificou que, passados mais de 10 anos, essa política ainda não foi implementada.

Os avanços na área são pontuais, como o atendimento de gestantes pela Rede Cegonha – estratégia do Ministério da Saúde voltado para a saúde de gestantes e recém-nascidos –, que permite que presas grávidas possam ir de ambulância à maternidade para dar à luz, e não de camburão. Mesmo quando a prisão domiciliar é implementada, direitos básicos podem ficar comprometidos. “Muitas vezes, com a mãe cumprindo pena em casa, a criança não tem quem a leve para a escola, por exemplo”, diz Simas. Para a pesquisadora, é urgente garantir medidas alternativas à prisão, e a academia pode ajudar nisso: “As pesquisas podem atuar para a transformação social. Por meio dos dados científicos, mostramos nossa indignação e a vontade de mudar”.

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