João Vitor Prudente
Os olhares mais atentos de quem cruza as avenidas da Ilha do Fundão talvez já tenham notado as placas que indicam o caminho para a Ilha do Bom Jesus. Porém, poucas pessoas que frequentam a Cidade Universitária da UFRJ sabem que, em meio ao ritmo intenso da vida acadêmica, existe um monumento histórico que resiste ao tempo: a Igreja do Bom Jesus da Coluna, tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).
Erguida no início do século XVIII, uma das mais antigas igrejas do Rio de Janeiro esconde-se entre as árvores às margens da Baía da Guanabara. A história começa em 12 de maio de 1704, quando a família Telles de Menezes doou a ilha à Congregação dos Frades Franciscanos. “Antes da doação, o local era conhecido como Ilha da Caqueirada. Após a chegada dos franciscanos, passou a se chamar Ilha dos Frades e, com a construção da Igreja conventual, recebeu o nome de Ilha de Bom Jesus”, conta a historiadora Ana Beatriz Ramos de Souza.
Em 1705, os franciscanos iniciaram as obras do convento e a igreja dedicada a Bom Jesus da Coluna. Segundo o padre Lindenberg Freitas, capelão militar à frente da igreja há mais de duas décadas, o nome remete à tradição católica de que Jesus Cristo ficou preso a uma coluna durante a flagelação. Hoje, a cena é representada no altar principal, sob o qual repousam também os restos mortais de dois membros da família doadora.
Ana Beatriz, que pesquisa o local desde 2003, explica que “a principal característica da construção é a sobriedade e simetria da fachada, arcos em cantaria e portas e janelas pintadas de azul”, aproximando a Igreja do estilo quinhentista. Mas a maior ornamentação no altar, com curvas, douramento e diversidade de elementos visuais remete à fase inicial do barroco. O interior tem paredes brancas, nave única com torre sineira e revestimento em madeira.
De local de festas a asilo
Durante a estadia de Dom João VI no Brasil (1808-1821), o local recebeu visitas ilustres nas celebrações de São Francisco de Assis. O espaço também acolhia escravizados que chegavam debilitados dos navios negreiros, mantidos em quarentena antes de seguirem para o comércio no Cais do Valongo. Após o retorno do monarca a Portugal, em 1824, os frades cederam parte do convento às Forças Armadas e passaram a utilizar a ilha como refúgio para religiosos adoecidos, sobretudo durante epidemias de febre amarela, malária e cólera.
Em 1867, durante a Guerra do Paraguai, Dom Pedro II determinou que a ilha abrigasse o Asilo dos Inválidos da Pátria – estrutura que seguiu o molde do Hôtel des Invalides, em Paris, que acolhia àqueles com graves sequelas. “O local era de difícil acesso e a chegada dependia de barcos que partiam da Ponta do Caju, que não era algo corriqueiro. Os poucos moradores das ilhas do entorno, não saíam do local, ficavam praticamente isolados, e isto favoreceu a escolha daquele espaço para a tentativa de resoluções sanitárias”, explica Ana Beatriz, que conheceu a Ilha do Bom Jesus durante pesquisas sobre os desdobramentos da Guerra do Paraguai.
A inauguração ocorreu em 29 de julho de 1868, data que coincide com o aniversário de Princesa Isabel, e contou com a presença de membros da corte e de oficiais militares. O espaço recebeu grande número de soldados mutilados e incapacitados. Segundo a pesquisadora, até “existia um sistema de tratamento, conhecido como ‘hospitais de sangue’, próximos aos campos de batalha, mas faltava um local para abrigar quem necessitava de tratamento mais demorado ou que não pudessem mais retornar à guerra pela gravidade das lesões”.

No final do século XIX e início do XX, o Asilo dos Inválidos também acolheu militares feridos nas guerras de Canudos e do Contestado. Enquanto isso, a Igreja do Bom Jesus da Coluna continuava celebrando missas, funerais e festividades religiosas que ofereciam conforto espiritual aos asilados.
A Proclamação da República (1989) significou a perda do apoio da Coroa ao Asilo – fruto da implantação do ideário republicano, que buscou “apagar” as memórias do império. Os franciscanos transferiram todas as instalações ao Exército, que assumiu a administração completa da ilha. Com o tempo, o local entrou em decadência. Em 1909, o escritor Leal de Souza relatou na revista Kosmos um episódio emblemático: marinheiros, indignados com o abandono, incendiaram parte do asilo. O fogo simbolizou o processo de esquecimento que marcaria a ilha no século XX.
A chegada da universidade
A partir de 1945, com a construção da Cidade Universitária, a Ilha do Bom Jesus foi incorporada à do Fundão, formada a partir da junção de outras seis ilhas: Baiacu, Cabras, Catalão, Pindaí do França, Pindaí do Ferreira e Sapucaia. O aterramento favoreceu a ocupação por famílias, especialmente de militares que ali trabalhavam.
Nascida na ilha em 1958, Rosa dos Santos foi batizada na Igreja do Bom Jesus da Coluna e recorda a infância: “Embaixo da igreja havia muitos túneis, e, em cada um deles, uma imagem de santa diferente”. Filha de militar, Rosa conta que a maior parte das casas foi demolida na década de 1970, quando os moradores foram transferidos para a Vila Residencial: “A gente andava livre, catando coco, abacate, jaca e baba-de-boi das árvores ao redor da igreja”.
A Igreja foi tombada pelo Iphan em 1964, mas permaneceu em abandono até o início do século XXI, quando começou a restauração. O processo incluiu a recuperação da estrutura física, vulnerável a ventanias e temporais, e a recomposição de imagens sacras, muitas furtadas ou deterioradas.
Afeto preservado
As obras foram concluídas em 2008, após uma parceria entre a Fundação Cultural do Exército, a Escola de Belas Artes da UFRJ e o Iphan. Quem presenciou as mudanças no local foi Glauce Silva Ferreira, que morou na Ilha de Bom Jesus por 22 anos. Quando ingressou na faculdade de Museologia, não teve dúvidas em realizar o Trabalho de Conclusão de Curso sobre o local. Para ela, a restauração “faz com que as futuras gerações conheçam e valorizem a herança cultural”. No seu caso, não falta memória: “Morei ao lado da igreja após meus pais se mudarem para a Vila Militar, na Ilha do Fundão. Nesse lugar encantador que fiz a minha Primeira Comunhão, participei de vários eventos, fui motivada a tocar e a cantar nas missas. São muitas lembranças de momentos vividos que ajudam na construção da memória afetiva em torno da igreja”.
O padre Lindenberg Freitas, que chegou ao Bom Jesus em 1990, também lembra que o local tem uma importância a nível nacional: “A corte frequentava aqui – Dom Pedro e a Princesa Isabel, que tinham uma força política, festejavam na ilha. Daqui nasceram outras paróquias, conventos e frades espalhados pelo Brasil. E esse pedacinho da cidade também é muito benéfico do ponto de vista espiritual”.
Mesmo após a restauração, o entorno destoa do valor simbólico do templo. A vegetação alta esconde a arquitetura vista em antigas representações artísticas. Próximo ao acesso à igreja, no Cais da Princesa Isabel, o acúmulo de lixo denuncia a degradação das águas que desembocam na porção noroeste da Baía de Guanabara. “Cabe uma sensibilização da sociedade no sentido de compreender a importância do patrimônio histórico, que é coletivo e que conta a história não somente de um indivíduo ou de uma Instituição, mas de todos nós”, explica Ana Beatriz
Hoje, a Igreja do Bom Jesus da Coluna é a única edificação restaurada do antigo conjunto. O Asilo dos Inválidos foi desativado em 1976, e as demais estruturas anexas foram demolidas. Encravada no território militar, a visitação à Igreja é permitida aos domingos, quando há missa, ou em dias de passeios guiados e caminhadas organizadas por ex-moradores da ilha.
Balé dos sonhos
A Igreja do Bom Jesus da Coluna também abriga iniciativas sociais que dialogam com a comunidade do entorno. Um exemplo é o Ballet Brasil, projeto que oferece aulas de balé clássico para crianças e adolescentes da Cidade Universitária, do conjunto de favelas da Maré e da Ilha do Governador.
Criado há 34 anos pela professora e bailarina Mercedes Ferrerro Valpassos, o projeto é administrado por ex-alunas. Mais de mil jovens já passaram pelas turmas, e muitos deles seguiram a trajetória artística. Uma dessas histórias é a de Elaine de Oliveira, que conheceu o Ballet Brasil quando ainda era estudante da Escola Municipal Tenente Antonio João, vizinha à entrada da área militar. “Eu comecei a dar aula pelo projeto, fiz faculdade de dança e cheguei a lecionar nele para custear a faculdade”, conta Elaine.
Para a professora, o espaço é acolhedor e oferece oportunidade a jovens que crescem em contextos de vulnerabilidade: “Só de estar em um lugar mais tranquilo já conta muito para elas. O maior ensinamento que fica é a possibilidade de sonhar alto. A gente pode voar e conquistar o que quiser”.