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Mil e uma utilidades: da despoluição dos mares ao combate à dengue
A professora Denise Freire em ação no Laboratório de Biotecnologia Microbiana (Foto de Fernando Souza)

Mil e uma utilidades: da despoluição dos mares ao combate à dengue

Biodetergente desenvolvido pelo Laboratório de Biologia Microbiana a partir de bactéria busca revolução verde na indústria

Maria Clara Patricio

Em um mundo assolado por desastres ambientais, uma solução surpreendente está sendo criada no Instituto de Química da UFRJ. Um biossurfactante – ou biodetergente – produzido pela bactéria Pseudomonas aeruginosa revela-se um poderoso instrumento não só na despoluição de praias e mares contaminados por óleo, mas também no combate ao mosquito Aedes aegypti, vetor de doenças como dengue, zika e febre amarela.

Uma substância surfactante possui uma parte que se mistura com água e outra com óleo. O composto inovador da UFRJ, que utiliza resíduo de biodiesel como alimento, tem muito mais eficiência do que qualquer detergente químico, além de ser totalmente biodegradável. Essa molécula multifuncional, desenvolvida há mais de 15 anos no Laboratório de Biotecnologia Microbiana (LaBiM), é a prova cristalina da chamada revolução verde na indústria.

Denise Maria Guimarães Freire, professora titular do Instituto de Química e coordenadora do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia-Hub para Inovação Aberta em Bioprodutos (INCT-HOIB), é a mente que comanda o projeto. A inspiração e o pontapé inicial vieram de uma demanda da Petrobras, que havia isolado a bactéria em um poço de petróleo e reconhecido o potencial. “Eles sabiam que a cepa produzia esse biodetergente, mas queriam alguém que, a partir da cepa, chegasse a um produto para ser aplicado”, relata Denise.

O desafio era, portanto, técnico: transformar a excreção de um microrganismo em produto industrialmente viável e com escala. Esse ciclo de pesquisa de longo prazo envolveu vários mestrados e doutorados, focado em otimizar a “dieta” da bactéria para garantir que a produção do biossurfactante ocorresse a partir de matérias-primas renováveis, como o resíduo do biodiesel, desvinculando-o da matriz petrolífera.

“O desenvolvimento de uma pesquisa nasce pequenininho, mas só chega à unidade piloto, como a gente tem atualmente, com muito investimento”, enfatiza a pesquisadora. “Não existe pesquisa sem investimento maciço e sem grau de incerteza.” O trabalho árduo levou o projeto de uma cepa isolada a um vasto portfólio de cepas otimizadas geneticamente, com aplicações que já se expandiram muito além da área petrolífera.

Alternativa sustentável

Contrariando a norma do mercado, em que quase todos os surfactantes são derivados do petróleo, tóxicos e não biodegradáveis, a UFRJ oferece uma alternativa superior e sustentável. A principal vantagem é a biodegradabilidade, pois o produto se decompõe naturalmente, fechando o ciclo do carbono e reduzindo o impacto ambiental. Em termos de eficácia e eficiência, alcança a Concentração Micelar Crítica (CMC) – concentração mínima necessária para a limpeza – com volumes muito menores.

“Comparado ao surfactante químico, é muito mais eficiente e, ambientalmente, muito mais interessante”, assegura Denise Freire. Além disso, testes indicam que o composto apresenta baixa irritabilidade à pele, característica que abre portas para a indústria de cosméticos, com formulações como a água micelar.

A multifuncionalidade levou a pesquisa até a saúde pública e a agricultura. Numa parceria com a Embrapa, o biossurfactante demonstrou ter ação larvicida poderosa contra insetos. Ao atacar a cutícula das larvas, faz com que elas desidratem e morram. Essa propriedade é de grande valor para o combate às arboviroses, grupo de doenças causadas por vírus e transmitidas por artrópodes, especialmente mosquitos.

A tecnologia abre a possibilidade de desenvolver um produto nacional, biodegradável, para ser aplicado em focos de água parada. “Se combate qualquer inseto, combate o mosquito”, avalia a professora. Ela, no entanto, reitera a necessidade de apoio financeiro: “É possível desenvolver, sim, um produto nacional, só que para isso tem que ter investimento”.

No setor agrícola, o biodetergente é igualmente promissor, atuando em sinergia com fungos usados como biopesticidas e no controle de pragas. Sua ação tensoativa, de redução da tensão superficial da água, permite que líquidos imiscíveis (como óleo e água) se misturem, fator crucial para garantir a molhabilidade dos solos e a distribuição uniforme de fertilizantes e defensivos.

O composto ainda está presente na formulação de filmes protetores para frutas, combatendo fungos pós-colheita e ajudando a mitigar perdas que podem chegar a 60% da safra.

“Conta ambiental”

Embora a pesquisa revele a cada dia novos horizontes – o LaBiM está iniciando projetos também na área de fármacos e vacinas –, a eficiência do produto já é indiscutível em situações de emergência ambiental. Um plano de contenção mapeia o tempo ideal de aplicação após o derramamento para evitar a fixação permanente do óleo. Em ambientes aquosos, o surfactante acelera a degradação do óleo. Em áreas atingidas por rompimentos de barragens, há o potencial de remover metais pesados do solo.

Apesar do sucesso científico e da vasta aplicabilidade, o biodetergente enfrenta um desafio que pouco tem a ver com a química: a economia de escala e a política industrial. O custo de produção ainda é superior ao dos detergentes convencionais, mas esse desequilíbrio, para a professora Denise Freire, é um reflexo direto de uma falha de mercado. “O custo de produção mais elevado do que o detergente químico se deve à mentalidade industrial, que não faz a ‘conta ambiental’ de forma correta”, argumenta.

A contradição se instala quando a legislação falha em precificar o dano ecológico. A pesquisadora é categórica ao apontar a falta de incentivo real para a transição: “A empresa não muda a matriz porque é mais fácil pagar a multa do que comprar o produto mais ecológico”. Enquanto não houver uma mudança de paradigma que internalize os custos ambientais e recompense as práticas sustentáveis, a tecnologia limpa terá dificuldade em competir, basicamente pelo preço. O bloqueio é amplificado pela falta de uma política pública contínua de incentivo ao desenvolvimento da indústria verde.

A barreira é intensificada pelo que Denise chama de “política de soluço” na ciência: “A pesquisa está muito relacionada à política pública. O Brasil tem uma política de soluço: aqui você investe, aí tem um determinado governo que não investe nada, um governo que resolve que o petróleo é que tem que ser. Essa oscilação dá uma incerteza muito grande de continuidade”.

DNA de cooperação

A falta de perenidade afasta o país do caminho de liderança da vanguarda tecnológica, perdendo espaço para nações como Alemanha e China, que investiram pesadamente em ciência, tecnologia e educação. Nesse contexto, o sucesso do LaBiM e de outras unidades da UFRJ é um testemunho da resiliência e da importância das políticas de Estado.

A lei dos royalties do petróleo foi essencial. “Eu não teria este laboratório se não fosse a obrigatoriedade que as petroleiras têm de investir em pesquisa. É uma política de Estado, não uma política de governo. Isso faz com que o Brasil mude.”

O trabalho da professora Denise se mantém firme, motivado pelo propósito. “Eu amo o que eu faço porque vejo resultado prático na vida”, analisa. “Vejo que consigo transformar a vida das pessoas.” O verdadeiro legado, para além das patentes, reside na formação de recursos humanos éticos e de alta qualidade e no “DNA de cooperação” que o LaBiM e o INCT-HOIB defendem.

O biodetergente da UFRJ, originário de uma bactéria em um poço de petróleo, é a prova de que a ciência brasileira tem a solução para alguns dos maiores dilemas do mundo, mas as políticas de Estado e o mercado precisam acompanhar a inovação gerada nos laboratórios.

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