Angela Santi
Professora Associada de Filosofia da Educação da Faculdade de Educação/UFRJ
Coordenadora do Projeto Imagem, Texto e Educação Contemporânea
É comum nos defrontarmos com a dificuldade de estudantes estarem concentrados e interessados nos processos próprios à sala de aula, que, talvez, pareçam estranhos e alheios às suas rotinas, agora mais associadas aos aparelhos eletrônicos e ao universo digital. Com a sensibilidade saturada de estímulos, são marcados e moldados psiquicamente por esses aparelhos e suas dinâmicas; seus corpos são requisitados de forma mínima, e sua presença parece ser incompatível com aquilo que a escola/universidade deles exige. O modelo educacional com o qual trabalhamos ainda hoje é uma “tecnologia de época”[1], fundado na modernidade, no século XVIII, fruto e agente ativo da construção de uma estrutura social e cultural bastante específica, que pressupunha (e forjava) subjetividades com características que hoje já não são mais possíveis – gerando uma crise entre esse modelo e aqueles para os quais se dirige.
As subjetividades modernas eram produzidas (e supostas) como interessadas, atentas e focadas: “a lógica característica do sujeito escolarizado presume que o aparelho perceptivo receba os estímulos e a consciência os reelabore, produzindo um sentido (…)”[2]. Tal processo acontece se é possível um tempo de imersão, demora e maturação, que só pode ocorrer em condições históricas e simbólicas que permitam tal experiência, dentro e fora dos espaços educacionais. Essa lógica vai sendo inviabilizada na medida em que a “vigência de uma cultura marcada pelas tecnologias de comunicação (…)” “engendra novas dinâmicas sociais e novos processos de subjetivação mobilizados, sobretudo, por essas tecnologias e por um predomínio da imagem(…)[3]”, associados à aceleração, ao hiperestímulo e à saturação pelo excesso de informação e dados, dificultando operações ligadas ao conhecimento e à pedagogia tradicionais, tais como as de assimilação focada, elaboração refletida e sedimentação de sentido.
Por isso, “torna-se fundamental articular (as) transformações culturais com
o trabalho educacional escolar”[4], de forma a reconhecer as profundas mudanças sociais
e subjetivas, construindo, ao mesmo tempo, espaços de contenção e resistência à fragmentação imposta pela hiperconectividade. Para isso, podemos pensar que a escola (e a universidade) pode construir dinâmicas em que seja possível vivenciar processos mais estendidos de contato com os saberes e sua assimilação, em que a demora, a maturação e a compreensão tenham lugar, sendo possível, então, “deter a multiplicação desenfreada de estímulos, com operações que possam sedimentar a experiência”[5] e o conhecimento. Entendemos que esse processo é possível com um deslocamento do que seja a tarefa da educação, saindo do campo exclusivo da aprendizagem[6] para se debruçar sobre aquilo que está presente, mas não é devidamente notado e potencializado.
Em “Educação como prática da liberdade”, Ron Scapp afirma a bell hooks: “Essa é uma das tragédias da educação hoje em dia. Um monte de gente não reconhece que ser professor é estar com as pessoas”[1]. Entendemos que é necessário, tal como afirma Scapp, reconhecer a ancoragem da educação na presença efetiva de nossos corpos na sala de aula, no corpo da coletividade que formamos juntos, provisória e precariamente, e no corpo do espaço físico que habitamos em comum, com seus atravessamentos arquitetônicos e institucionais. Assumindo as características básicas que as instituições educacionais já têm – a saber, pessoas compartilhando juntas lugares e tarefas comuns, espaço e tempo de partilhas presenciais, pertencimentos afetivos –, damos à educação um aterramento[2] que reconhece e acolhe as subjetividades contemporâneas, entendendo tal reconhecimento como parte do trabalho pedagógico.
Aterrar a educação significa considerar a presença compartilhada, assentada em corpos e subjetividades reais, o que permite que possamos novamente encantar a sala de aula e os espaços acadêmicos [3]. Em um momento em que a escola e a universidade não são mais lugares exclusivos para o acesso e a produção de conhecimento, talvez caiba a nós, professoras e professores, recuperar aquilo que os estoicos afirmavam sobre a filosofia: que ela é “um exercício”. A seus olhos, “a filosofia não consiste no ensino de uma teoria abstrata”, ainda menos “na exegese de textos”, mas em uma “arte de viver, numa atitude concreta, num estilo de vida determinado, que engloba toda a existência” [4].
Envolvendo uma dimensão política, ética e existencial, é possível que as subjetividades hoje entediadas, cansadas e dispersas[5] possam se reconectar com a educação através da construção de vínculos efetivos com o espaço, o tempo e suas presenças, produzindo um ambiente comum onde os significados incluam, mas também ultrapassem, os conteúdos específicos de cada disciplina, podendo ser, da mesma forma, “espaços de encontro e diálogo, de produção de pensamento e decantação de experiências capazes de insuflar consistência nas vidas que habitam [a educação e as instituições de ensino]”[6].
[1] SIBILIA, P. Redes ou paredes. A escola em tempos de dispersão. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012.
[2] SIBILIA, 2012, p. 90.
[3] Trecho do texto de apresentação do ITEC, disponível em: https://www.itecimagemetexto.org/ Acesso em: 30 ago. 2025.
[4] SIBILIA, 2012, p. 90.
[5] SIBILIA, 2012, p. 91.
[6] Com relação a essa questão, Nóvoa afirma que as “referências à aprendizagem estão omnipresentes, uma espécie de aprendixorbitância, um discurso excessivo, exagerado, sobre a aprendizagem, que relega para segundo plano as outras dimensões da educação. Verifica-se a desvalorização do sentido coletivo da escola (…)”. In: NÓVOA, A. “Os Professores e a sua Formação num Tempo de Metamorfose da Escola”. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 44, n. 3, e84910, 2019, p. 4. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/2175-623684910 . Acesso em: 06 set. 2025.
[7] hooks, b. Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade. 2 ed., São Paulo: Martins Fontes, 2017, p. 222.
[8] Latour entende o aterrar como um “antídoto” para a perda de uma orientação comum. Sobre essa noção, ver: LATOUR, B. Onde aterrar? Como se orientar politicamente no Antropoceno. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2020.
[9] Em termos complementares, Nóvoa sugere uma metamorfose da escola, que “implica a criação de um novo ambiente educativo (uma diversidade de espaços, práticas de cooperação e de trabalho em comum, relações próximas entre o estudo, a pesquisa e o conhecimento)”. In: NÒVOA, A. 2019, p. 7.
[10] HADOT, P. Exercícios espirituais e filosofia Antiga. São Paulo: É Realizações, 2014, p. 22;
[11] Diagnóstico feito sobre as subjetividades contemporâneas por autores como HAN, B. Sociedade do cansaço, Petrópolis: Vozes, 2015;e CORREA, C.; LEWKOWICS, Pedagogía del aburrido: escolas destruídas, famílias perplejas. Buenos Aires: Paidós, 2010.
[12] SIBILIA, P., 2012, p. 211.